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Viciar é o melhor negócio?

Como equilibrar monetização e uso saudável de plataformas

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Desde a forma como consumimos conteúdo nas redes sociais, até a forma como utilizamos nosso e-mail, você já parou para pensar que muitas coisas foram feitas para nos viciar? Não é novidade que os algoritmos das redes sociais são feitos para nos prenderem, afinal, como já apresentado no documentário The Social Dilemma do Netflix, se você não está pagando pelo produto, você é o produto. E nesse caso, o nosso tempo e a nossa atenção, como já falamos neste outro Morse Trends, é a peça chave destes modelos de negócio. Mas tirando as redes sociais, existem diversas outras plataformas e ambientes que também tem como modelo de negócios nos viciar. Mas esse ainda é um bom negócio? 

É claro que o engajamento e atenção dos usuários são importantes para qualquer negócio, e existem formas de “lembrar” nossos clientes sobre nossas soluções, apps e negócios. Mas e quando a forma como queremos engajar “passa do ponto”? Qual o limite?

O jogo do vício

Viciar as pessoas em produtos e serviços não é algo novo e nem limitado ao mundo digital. De medicamentos a chocolates, refrigerantes e energéticos, passando pelo nosso cafezinho do dia a dia, muito do que consumimos hoje em dia, nao apenas passou a fazer parte da nossa rotina, como na verdade passou a moldar a nossa rotina. Quem aqui não tem a hora do cafezinho? Ou o momento do chocolate em sua rotina? A diferença do passado para o agora é que, antigamente, os produtos poderiam se tornar viciantes de duas formas; por elementos químicos utilizados em sua composição, ou por gatilhos mentais que exploravam a psicologia humana através da publicidade. No caso de elementos químicos, a fiscalização é um pouco mais simples e óbvia, analisando quimicamente os elementos utilizados, e muitas empresas já foram autuadas por exagerarem em componentes que teriam características viciantes. Já na publicidade o desafio sempre foi um pouco mais subjetivo, mas mesmo assim com formas de se travar os exageros.

Agora, no mundo dos produtos e serviços digitais, o desafio se torna muito maior. As empresas são globais e com isso a fiscalização é mais complexa, além disso, órgãos fiscalizadores muitas vezes nem entendem o que está por trás dos avanços das tecnologias utilizadas por essas empresas, e para os consumidores, os elementos viciantes ficam tão escondidos na estrutura dos produtos e serviços, que a barreira do “esse app é incrível” para o “esse app é viciante” é imperceptível. O vício subjetivo pela psicologia humana deixou de estar “apenas” na comunicação e entrou de vez no produto.

A metodologia do vício

Justamente por ser algo novo, difícil de ser fiscalizado, ou mesmo entendido, o vício nos produtos digitais durante muito tempo foi visto como um “ativo” das empresas que conseguem criá-lo, com profissionais renomados sendo reconhecidos e premiados pelo seu know-how no assunto, com artigos, palestras, livros e até aulas sobre o tema. Algumas empresas, como vimos no documentário citado acima, possuem metas que nada mais são do que indicadores derivados do vício das pessoas, como por exemplo crescimento de frequência e tempo de uso de apps e games em patamares que, visivelmente, ao serem atingidos, “engolem” parte da vida das pessoas. Pela teoria, apps e serviços digitais deveriam otimizar nossas vidas e rotinas com objetivo de nos desprendermos de tarefas cotidianas, porém, em alguns casos, isso passa do limite e começa a consumir, ao invés de liberar, o nosso tempo. O Netflix por exemplo surgiu para, teoricamente, otimizar o nosso tempo de ir na locadora buscar e devolver um filme, mas o que aconteceu na prática foi que hoje podemos maratonar uma série e perder o domingo inteiro. Se a decisão for sua, muito bem… mas quando saber se a decisão de maratonar foi mesmo sua, ou se foi um gatilho disparado por uma metodologia de vício digital na qual você nem sabe que está inserido?

Os Gurus do Vicio

O escritor Nir Eyal criou um modelo de startups para desenvolver apps que viciam. Ele é autor do best-sellerHooked (Engajado): Como construir produtos e serviços formadores de hábitos“. O livro ensina exatamente como adotar estratégias de engajamento e criar plataformas cativantes. A lógica é simples, se eu crio nos usuários o hábito de usarem meu produto/app cada vez mais, mais eu cresço e evito que migrem para concorrência ou percam interesse. E foi dentro dessa lógica que muitas empresas criaram soluções que tem como objetivo utilizar diversos gatilhos do subconsciente e da psicologia humana para criar essa dependência. Tanto que já foi provado que isso se traduz inclusive em reações químicas do organismo, que tornam a dependência ainda mais severa. E saibam, nada aqui é por acaso, as empresas fazem estudos e contratam especialistas para atingir esse estágio viciante de seus produtos e serviços.

O revés do vício

Porém, na contramão deste cenário, algumas empresas já começaram a criar travas anti vício de seus produtos. Em parte por pressão de órgãos reguladores, mas também por um motivo mais prático, urgente e importante, a estratégia do vício como modelo de negócio já está tendo seu revés no próprio negócio.

Um dos pontos de revés vem do fato de que plataformas como Google e Apple, que distribuem apps terceiros, e ditam as regras do que acontece no ecossistema mobile (onde quase tudo acontece na verdade) já criaram serviços que ajudam os usuários a monitorar e até travar o tempo de uso de alguns apps. Nesse caso, se o usuário limitar o uso de algum app, o dono do app perde a autonomia da relação com o usuário, então atuar preventivamente passa a ser algo importante quando se olha pro futuro.

Outro revés vem dos próprios consumidores e usuários, que estão fugindo do vício. Quantas vezes já não utilizamos a frase “isso aqui é viciante” como um adjetivo positivo de algo, literalmente um elogio a alguma mecânica que, num primeiro momento, traz a euforia e o prazer da diversão momentânea. Porém, agora, essa mesma frase volta a ser interpretada no sentido literal pelos usuários.

Os usuários já estão se questionando se, ao invés de serem impactados por estratégias de engajamento, na verdade não estão sendo impactados, e manipulados, por mecanismos de vício… e muitos já querem saber como curar esse vício. Alguns já estão atuando preventivamente para evitar se tornarem viciados. De pais e mães que proíbem os filhos de utilizar alguns serviços para tentar evitar, ou ao menos postergar, esse comportamento de seus filhos, a usuários que já encerraram suas contas de algumas plataformas para essa desintoxicação digital. Alguns, menos radicais, não deletam seus perfis, mas deletam os apps ao longo da semana, por exemplo, para não terem essa distração cotidiana. Ou seja, a busca desenfreada por viciar clientes e consumidores pode ter encontrado algo mais desafiador do que leis e regras das empresas, a reação dos próprios consumidores que passam a tentar evitar esse tipo de negócio.

A plataforma de e-mails Superhuman foi criada pensando exatamente em uma experiência melhor, mais rápida e com menos estresse para os usuários. Com uma plataforma “clean” a experiência fica pautada na eficiência do processo e menos no tempo de tela. Um exemplo de empreendedorismo que atende e busca o oposto do vício. 

A nova metodologia

Essa tendência já não é de agora, tanto que, em 2020, o próprio autor do Hooked, que falamos acima, lançou um novo livro chamado “(In)distraível: Como dominar sua atenção e assumir o controle da sua vida que seria o antídoto para o “veneno” que ele criou antes. Neste novo cenário, algumas empresas já passam a mudar suas metas e OKRs, que outrora focavam o crescimento acelerado de frequência e tempo de uso, e agora buscam entender qual o equilíbrio entre monetização e uso saudável de suas plataformas, e buscam outras métricas de sucesso. O assunto se torna tão relevante que alguns fundos de investimento já analisam isso antes de investir em empresas, trazendo provocações sobre qual a equação de ARPU (average revenue per user) versus a necessidade de uso. Ou seja, se para o U.E. (Unit Economics) de uma empresa “parar de pé” for necessário que os usuários tenham uma frequência ou tempo de uso além do saudável neste novo cenário, este modelo de negócios não é sustentável nos dias de hoje e num futuro próximo. Em resumo, diferente do que se pensava no passado, parece que o modelo de negócios do vício está enfim começando a deixar de ser um bom negócio.


O Morse Trends de hoje surgiu de uma provocação da Marina Almeida, Head de Open Innovation da The Bakery, que trouxe a pauta para discussão. Já o livro Hooked, que lemos ano passado e mencionamos aqui, foi uma sugestão, e um presente, do Roberto Marinho do Conta Zap, que além de leitor e ouvinte do Morse, já participou do MorseCast Entrevistas. Marina e Roberto, muito obrigado pela contribuição!

E se você quiser trazer suas provocações ou opiniões para a pauta do Morse Trends, mande um email para contato@morse.news. Será um prazer pautarmos juntos o próximo Morse Trends 🙂

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